5. Utilidade do princípio da dupla instrumentalidade

As reflexões suscitadas pelo princípio aqui proposto são úteis.
Elas trazem para o palco jurídico decisões que não podem sair do seu âmbito. Aos avanços técnico-eletrônicos de plantão, são contrapostos os milenares avanços da técnica processual, num primeiro passo, e as conquistas do Direito, em seu todo, num segundo.   Para os homens só interessa – embora interesse muito -  o que a técnica possa oferecer para o aprimoramento dessas conquistas do pensamento jurídico ocidental, hoje consolidadas no Estado constitucional de Direito.

A menção a palco jurídico e aos interesses dos homens atrai a incidência analógica,  no ato de consideração da pertinência das incorporações tecnológicas ao sistema processual, das lucubrações dos teóricos da argumentação jurídica sobre o princípio de universalização U[1]. Cabe condicionar a validade de qualquer incorporação, em termos gerais, a que as conseqüências e os efeitos colaterais, sob as circunstâncias dadas, sejam aceitas por todos os implicados após adequada tematização. Todos os atores processuais, genericamente tomados, deverão opinar e posicionar-se, pois o aperfeiçoamento do processo é do interesse de todos. Qualquer incorporação fundada apenas em razões do Estado, por exemplo, carecerá de legitimidade.

Será que a incorporação das novidades tecnológicas ao processo tem sido precedida da necessária consideração prudencial? Parece que não. As perplexidades têm se multiplicado entre os operadores do Direito na mesma medida em que o legislador, de dentro ou de fora do legislativo,   edita regulamentações para a área.  Isso preocupa porque tais perplexidades não dizem respeito apenas às regras triviais, onde se espera, mesmo, o ajuste da regulação com o decorrer da prática processual. Têm ocorrido violações (ou ameaças) de direitos subjetivos fundamentais como os da intimidade, da dignidade da pessoa humana e da propriedade. Os casos poderiam ser multiplicados e passam por (i) normas legais, tais como as da lei 11.419/2006[2] afirmadas inconstitucionais e  (ii) práticas que se mostraram, a princípio, aptas ao aprimoramento de determinados princípios constitucionais  e que,  de fato,  criaram ofensas a direitos fundamentais.

Aliás,  recente  decisão do Superior Tribunal de Justiça  declara inconstitucional a adoção do interrogatório por vídeo-conferência:

INTERROGATÓRIO. VIDEOCONFERÊNCIA. NULIDADE ABSOLUTA.
O interrogatório judicial realizado por meio de videoconferência
constitui causa de nulidade absoluta processual, pois afronta o
princípio constitucional do devido processo legal e seus consectários
(art. 5º, LV, da CF/1988). Precedente citado do STF: HC 88.914-SP, DJ
5/10/2007. HC 108.457-SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 18/9/2008.

Como demonstra a decisão, a força da tecnologia pode exigir que se generalize e leve  muito a sério a advertência de Cintra, Grinover e Dinamarco, a respeito do  princípio da publicidade[3]:    “[...]  toda precaução há de ser tomada contra a exasperação do princípio da publicidade.”[4]  Na verdade, o fenômeno da exasperação pode estar ligado a vários princípios processuais. Os excessos não se conciliam com o princípio da proporcionalidade, um corolário da ação legítima dos poderes instituídos de todos os atuais Estados constitucionais de Direito.

O acréscimo do ferramental posto à disposição do Poder para avançar sobre, por exemplo, a vida privada das pessoas ou o seu patrimônio,  exige que a reflexão jurídica, de todos os possíveis implicados, preceda e autorize a incorporação tecnológica ao procedimento. O caso da penhora on-line de numerários é outro exemplo onde a falta de consideração prévia adequada e do exato sopesar dos princípios envolvidos permitiu que se multiplicassem violações a direitos fundamentais. Basta lembrar que, no início, independentemente do valor buscado, tornavam-se indisponíveis todas as importâncias existentes em contas do réu. 



[1] Jürgen Habermas, falando dos sistemas normativos,  enuncia assim o princípio U, cuja aplicação analógica é sugerida por este artigo: “[...] somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva.” HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.  Tradução de Flávio Beno Siebeneichler.  Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1997, v.1. p. 145. Sobre a interpretação e aplicações do pirncípio U, recomenda-se a leitura de GÜNTHER, Klaus.  Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação.  São Paulo:Landy Editora, 2004. p. 39-73. Diz Günther, por exemplo, na p. 44,  que “[...]  faz parte da comparação de situação que eu me coloque na condição daquele que está sendo afetado pelas conseqüências dos meus atos, e que considere se eu ainda aceitaria a norma  proposta como obrigatória, para mim e para os demais, mesmo se as necessidades e os interesses do outro também fossem levados em consideração.” Mutatis mutandis, cabe perfeitamente o raciocínio na avaliação da oportunidade de incorporar a tecnologia ao processo. 
[2] ADI 3880, de 30/03/2007, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, contra os artigos 1º, III, “b”, 2º, 4º, 5º e 18. Os questionamentos referem-se, entre outros:  à ofensa ao direito fundamental insculpido no inciso XIII do artigo 5º da Constituição – livre exercício de trabalho, ofício ou profissão – e aos princípios da isonomia e da publicidade dos atos processuais – incisos  I e LX, do mesmo art. 5º.
[3] “[...]  torna-se imprescindível que tribunais, em consórcio com órgãos de representação de advogados e de membros do Ministério Público, atuem, preventivamente, na fixação de parâmetros mínimos de resguardo e garantia à privacidade dos envolvidos (e de proteção aos trabalhos profissionais/jurídicos), a fim de que o processamento eletrônico dos feitos não deságüe na infinita exposição de pessoas e entidades, completamente fora do escopo da prestação jurisdicional tecnicamente devida a cada litígio.” BOTELHO, Fernando Neto. O processo eletrônico escrutinado – parte VIII.
[4] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, et al.Teoria Geral do Processo, p. 69-70.