As reflexões suscitadas pelo princípio aqui proposto são úteis.
Elas trazem para o palco jurídico decisões que não podem
sair do seu âmbito. Aos avanços técnico-eletrônicos de plantão, são
contrapostos os milenares avanços da técnica processual, num primeiro passo, e
as conquistas do Direito, em seu todo, num segundo. Para os homens só interessa – embora
interesse muito - o que a técnica possa
oferecer para o aprimoramento dessas conquistas do pensamento jurídico ocidental,
hoje consolidadas no Estado constitucional de Direito.
A menção a palco
jurídico e aos interesses dos homens
atrai a incidência analógica, no ato de
consideração da pertinência das incorporações tecnológicas ao sistema
processual, das lucubrações dos teóricos da argumentação jurídica sobre o
princípio de universalização U[1].
Cabe condicionar a validade de qualquer incorporação, em termos gerais, a que
as conseqüências e os efeitos colaterais, sob as circunstâncias dadas, sejam
aceitas por todos os implicados após adequada tematização. Todos os atores
processuais, genericamente tomados, deverão opinar e posicionar-se, pois o
aperfeiçoamento do processo é do interesse de todos. Qualquer incorporação
fundada apenas em
razões do Estado , por exemplo, carecerá de legitimidade.
Será que a incorporação das novidades tecnológicas ao
processo tem sido precedida da necessária consideração prudencial? Parece que
não. As perplexidades têm se multiplicado entre os operadores do Direito na
mesma medida em que o legislador, de dentro ou de fora do legislativo, edita
regulamentações para a área. Isso
preocupa porque tais perplexidades não dizem respeito apenas às regras
triviais, onde se espera, mesmo, o ajuste da regulação com o decorrer da
prática processual. Têm ocorrido violações (ou ameaças) de direitos subjetivos fundamentais
como os da intimidade, da dignidade da pessoa humana e da propriedade. Os casos
poderiam ser multiplicados e passam por (i) normas legais, tais como as da lei
11.419/2006[2]
afirmadas inconstitucionais e (ii)
práticas que se mostraram, a princípio, aptas ao aprimoramento de determinados
princípios constitucionais e que, de fato, criaram ofensas a direitos fundamentais.
Aliás, recente decisão do Superior Tribunal de Justiça declara inconstitucional a adoção do interrogatório
por vídeo-conferência:
INTERROGATÓRIO. VIDEOCONFERÊNCIA. NULIDADE
ABSOLUTA.
O interrogatório judicial realizado por meio de videoconferência
constitui causa de nulidade absoluta processual, pois afronta o
princípio constitucional do devido processo legal e seus consectários
(art. 5º, LV, da CF/1988). Precedente citado do STF: HC 88.914-SP, DJ
5/10/2007. HC 108.457-SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 18/9/2008.
O interrogatório judicial realizado por meio de videoconferência
constitui causa de nulidade absoluta processual, pois afronta o
princípio constitucional do devido processo legal e seus consectários
(art. 5º, LV, da CF/1988). Precedente citado do STF: HC 88.914-SP, DJ
5/10/2007. HC 108.457-SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 18/9/2008.
Como demonstra a decisão, a força da tecnologia pode exigir
que se generalize e leve muito a sério a
advertência de Cintra, Grinover e Dinamarco, a respeito do princípio da publicidade[3]: “[...] toda precaução há de ser tomada contra a
exasperação do princípio da publicidade.”[4] Na verdade, o fenômeno da exasperação pode estar ligado a vários princípios processuais. Os
excessos não se conciliam com o princípio da proporcionalidade, um corolário da
ação legítima dos poderes instituídos de todos os atuais Estados
constitucionais de Direito.
O acréscimo do ferramental posto à disposição do Poder para
avançar sobre, por exemplo, a vida privada das pessoas ou o seu patrimônio, exige que a reflexão jurídica, de todos os
possíveis implicados, preceda e autorize a incorporação tecnológica ao
procedimento. O caso da penhora on-line de
numerários é outro exemplo onde a falta de consideração prévia adequada e do
exato sopesar dos princípios envolvidos permitiu que se multiplicassem
violações a direitos fundamentais. Basta lembrar que, no início,
independentemente do valor buscado, tornavam-se indisponíveis todas as
importâncias existentes em contas do réu.
[1]
Jürgen Habermas, falando dos sistemas normativos, enuncia assim o princípio U, cuja aplicação
analógica é sugerida por este artigo: “[...] somente podem pretender validade
legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os
parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva.”
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia:
entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1997, v.1.
p. 145. Sobre a interpretação e aplicações do pirncípio U, recomenda-se a
leitura de GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na
moral: justificação e aplicação. São Paulo:Landy Editora, 2004. p. 39-73.
Diz Günther, por exemplo, na p. 44, que
“[...] faz parte da comparação de
situação que eu me coloque na condição daquele que está sendo afetado pelas
conseqüências dos meus atos, e que considere se eu ainda aceitaria a norma proposta como obrigatória, para mim e para os
demais, mesmo se as necessidades e os interesses do outro também fossem levados
em consideração.” Mutatis mutandis,
cabe perfeitamente o raciocínio na avaliação da oportunidade de incorporar a
tecnologia ao processo.
[2] ADI
3880, de 30/03/2007, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
contra os artigos 1º, III, “b”, 2º, 4º, 5º e 18. Os questionamentos referem-se,
entre outros: à ofensa ao direito
fundamental insculpido no inciso XIII do artigo 5º da Constituição – livre
exercício de trabalho, ofício ou profissão – e aos princípios da isonomia e da
publicidade dos atos processuais – incisos I e LX, do mesmo art. 5º.
[3]
“[...] torna-se imprescindível que
tribunais, em consórcio com órgãos de representação de advogados e de membros
do Ministério Público, atuem, preventivamente, na fixação de parâmetros mínimos
de resguardo e garantia à privacidade dos envolvidos (e de proteção aos
trabalhos profissionais/jurídicos), a fim de que o processamento eletrônico dos
feitos não deságüe na infinita exposição de pessoas e entidades, completamente
fora do escopo da prestação jurisdicional tecnicamente devida a cada litígio.”
BOTELHO, Fernando Neto. O processo
eletrônico escrutinado – parte VIII.
[4]
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, et al.Teoria Geral do Processo, p. 69-70.